Ano VII

Friedkin – ação e sobrevivência

sexta-feira fev 24, 2017
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Operação França

William Friedkin – ação e sobrevivência 

por Rafael Dornellas

No trabalho de William Friedkin há uma preocupação essencial com a relação direta entre planos e cenas filmadas, a cada corte um cuidado laborioso em se estabelecer o contato direto entre as partes. Há sobretudo nesse pensamento a busca pelo choque, pela constante materialização fílmica que nos chame a atenção para o conflito representado: nos violentos cortes de Operação França (1971), em que o desarranjo meio a espiral descendente na qual o personagem interpretado por Gene Hackman se encontra, somos atingidos sucessivamente drenando as energias para o plano caótico que é a vida de Doyle, ou quando no início de Viver e morrer em Los Angeles (1985) o policial protagonista Richard Chance diz para seu futuro parceiro que irá fazer o que for preciso para capturar o assassino de seu antigo companheiro e, antes de qualquer possibilidade de apreensão do momento, um corte seco para o plano próximo de uma máquina de contar dinheiro revela a matéria máxima das relações para onde tudo no filme converge. Antes disso, a sequência de abertura já edifica de maneira clara sua espinha dorsal: o dinheiro que é passado de mão em mão por toda Los Angeles.

Parte determinante da geração que compôs a Nova Hollywood nos Estados Unidos, importante constatar a presença de Friedkin naquele grupo diversificado como um cineasta de essência moderna, consciente da situação em que se encontrava, sabendo canalizar uma grande influência no classicismo de gênero trabalhando com seus códigos e constantemente realizando um verdadeiro chamado para a ação à maneira hawksiana, mas com a consciência e com o peso de ter chegado depois na história do cinema – já não era possível realizar um filme de gênero puro nos anos setenta, e o resultado é Operação França.

Impossível pensar em Operação França e Viver e morrer em Los Angeles, por exemplo, sem constatar a perfeita consonância com o sentimento vigente nos Estados Unidos dos anos em que foram realizados. No primeiro, o início de uma década de desilusão, da derrota no Vietnã, de uma Nova York decadente, dos personagens ambíguos e embrutecidos por aquele cenário. No segundo, a claridade ensolarada e vibrante de Los Angeles nos anos oitenta, anos de Ronald Reagan, de videoclipes e publicidades sendo constantemente repetidas nas televisões, de relações rasas e vazias completamente sustentadas ao redor do dinheiro e geridas pelo o lucro.

Se em Operação França havia um desespero que transformava o policial Jimmy Doyle em um corpo rígido se lançando inadvertidamente como um trem descarrilhado para o encalço da rede de tráfico de drogas internacional, em Viver e morrer em Los Angeles a fisicalidade dos corpos e as personagens trabalhadas à superfície atingem um ponto máximo – Friedkin constrói seu filme num plano aparente em que os corpos presentes em tela, plastificados, são empurrados mecanicamente através do movimento mundano dos negócios; os intercâmbios se dão junto a incessante perda de identidade frente à imponência de uma força maior e difícil de se combater.

Masters, vilão interpretado por Williem Dafoe, é um pintor talentoso e seu ofício ilegal de falsificar notas de dólar é traduzido em uma enorme sequência como um verdadeiro processo artístico para o personagem, concretizando sua representação nos volumes de tinta que se misturam para atingir o aspecto cromático perfeito, ou na intrincada mecânica da máquina que copia e imprime as notas. Masters é o fruto perfeito daquele momento, movido e guiado pelo dinheiro que fabrica e recebe. Queimar suas próprias pinturas friamente é mais um aspecto de um período na história das formas em que nada mais parecia se abrir ao novo, à surpresa e ao encantamento – a publicidade nos mostrava que todas as imagens já haviam sido exploradas e o momento era de um imenso catálogo de pontos de vista a serem usados como melhor conviesse para se vender algum produto. A verdade de Masters encontra-se em sua aceitação e seu oportunismo como um verdadeiro homem do seu tempo.

É natural que dentro de seu arranjo de forças Friedkin abandone seus protagonistas impetuosamente. No ápice de sua busca desesperada em Operação França, Jimmy Doyle desaparece após assassinar acidentalmente um agente que o acompanhava em sua missão em um plano que se limita a filmá-lo de longe não mais o acompanhando. Richard Chance no filme de 1985 morre com um tiro de espingarda que abre um buraco em sua cabeça filmado em um violento plano próximo; seu parceiro John Vukovich segue seus passos e, após assistir a Masters morrer incendiado, procura a informante de seu falecido parceiro e finalmente mergulha esvaziado naquele mundo que até então havia olhado com cautela e restrição.

Certamente não foi à toa que Jean Baptiste Thoret citou Viver e morrer em Los Angeles juntamente com Scarface (1982), de Brian De Palma, como produtos que melhor souberam lidar diretamente no tratamento formal com sua época – seja no ascetismo luxuoso das mansões de Miami em De Palma ou na superfície ensolarada de Los Angeles em Friedkin. Não seria demasiado dizer que Viver e morrer em Los Angeles ao configurar um olhar perfeitamente ambientado e consciente do momento em que se filma e utilizando essa consciência como catalise de sua construção formal e relação de esgotamento de profundidade entre as personagens figura entre os mais importantes filmes norte-americanos de sua década.

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Impressiona muito nos grandes momentos do diretor o escoamento dos eventos que desembocam em um núcleo duro que concentra o corpo humano como estado bruto e na ação como movimento desses corpos filmados. O início de O comboio do medo (1977) em que rapidamente se apresenta os quatro personagens principais não se dá de forma a conhecermos suas profundidades, ou estabelecermos algum contato psicológico com eles que permita um entendimento denso de seus objetivos e intenções. Friedkin constrói seu prólogo para expor os corpos que efetuarão a ação, como se estivesse simplesmente apresentando seus rostos para o espectador.

Uma vez situado todos na localidade principal, o filme concentra todas suas forças em seu propósito maior e atira esses quatro homens em dois caminhões cheios de explosivos meio a uma densa floresta em condições mínimas de sobrevivência. A certa altura, principalmente nas cenas da travessia da ponte ou na explosão do tronco de árvore, não importa mais o porquê deles chegarem ali ou o que move aqueles indivíduos. Há somente um imenso sentimento de desespero frente a um horizonte nebuloso de derrota iminente para aquele mundo que os ameaça engolir a cada nova cena. Nada mais atual e pertinente para o fim de uma década que havia olhado para uma nova geração de cineastas com generosidade e terminava virando as costas para eles contribuindo para que obras primas como O portal do paraíso, 1980, de Michael Cimino, assim como O comboio do medo, terminassem como fracassos em sua recepção, simbolizando a derrocada desse momento no cinema norte americano.

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Um retorno a William Friedkin se faz necessário atualmente para que seja identificado da maneira que se deve um sistema de trabalho que soube lidar precisamente com a história do cinema, com a tradição dos gêneros, inserindo-os em seu tempo, erguendo-se em um violento chamado para a ação física e traçando um panorama da América sob um ponto de vista particular a respeito dos caminhos tomados por aquela sociedade.

O que seria, por fim, O exorcista (1973), além de um marco no terror norte americano, senão um despejo assustador de forças maiores para o aspecto terreno e ríspido das ações das personagens – tão aterrorizante quanto o definhamento físico de Regan é vê-la impotente diante dos imensos aparatos médicos e aparelhos de ressonância que buscam sem sucesso uma solução –, que ao fim se encontram junto ao espectador em um cenário desolador de terra arrasada em que não somente inexiste um olhar esperançoso como qualquer resposta diante daquele mal que se ergueu e venceu progressivamente durante o filme? Diante dele o que resta é um corpo inoperante do padre Karras atirado escada abaixo e desfigurado frente à queda em uma tentativa desesperada de expulsar o mal e reestabelecer a ordem das coisas.

Como grande parte da geração da qual pertenceu, Friedkin carrega consigo uma possibilidade que gradativamente vem se perdendo no cinema – que James Gray recentemente chamou de “o meio do caminho”. Realiza um trabalho autoral que indica uma maneira clara de se ver o mundo mas não vira as costas para o cinema como arte popular em sua essência. Esse meio do caminho que em Hitchcock, Lang, Ford, Hawks, Walsh e tantos outros era soberano, e em Friedkin não mais naturalizado no seio da indústria mas uma conquista diante daquele tempo, atualmente é um vazio distante tanto das últimas superproduções da Marvel quanto de filmes extremamente independentes chancelados por certos festivais.

Mais do que nunca, olhar para tal conjunto na filmografia de Friedkin é se ater a uma percepção que indique um caminho, uma tomada de consciência distante de se forjar uma redoma intocável em torno de sua obra. É o enfrentamento direto, a constante adaptação ao tempo em que se vive sem dobrar-se diante da iminência do desastre em um ambiente desfavorável e hostil – a soberania e vigor do corpo. E não seria esse o caminho natural que nos leva a Caçado (2003), um de seus mais recentes filmes e que felizmente continua a carregar em sua matéria bruta uma indignação e uma constante busca pela sobrevivência?

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