Ano VII

Até o Último Homem

sexta-feira fev 24, 2017

hacksaw

Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016), de Mel Gibson

No lançamento dos dois últimos filmes de Mel Gibson o tópico sobre o qual mais se verteu tinta a respeito foi a violência gráfica que embasava essas obras. Tanto em A Paixão de Cristo (2004) quanto em Apocalypto (2006) a dilaceração explícita dos corpos foi o que mais chocou e rendeu as notícias das mais diversas (talvez em conjunto com a discussão teológica que veio à tona com o filme de 2004). Também pudera, já que ambas as obras se escoram sobre uma noção de espetáculo extremamente estéril. Tudo nelas diz respeito a tocar em temas “importantes e polêmicos”, mas calcando sua abordagem e sua moral puramente no plano do espetáculo, como numa adaptação de uma peça da Broadway aqui no Brasil, na qual se trabalha a curiosidade de ver determinado tema consagrado ganhando vida a partir de ingredientes diversos dos originários. Esses filmes promoviam, assim, a circulação de temas e motivos já conhecidos, só que agora calcados sobre o prisma do ineditismo, fixando-se, de forma complementar, numa exaltação dos valores de produção empregados: eram espetáculos que devoravam a si mesmos e sobre os quais restavam poucas coisas a serem ditas.

O novo filme de Mel Gibson também é calcado sob a mesma abordagem da violência gráfica. Quantos não são os momentos de embates, nos campos de batalhas, nos quais presenciamos os batalhões sendo cruelmente dilacerados? Aqui, mais uma vez, Gibson se entrega a esse desejo de filmar a violência no seu estado mais bruto possível, só que, diferentemente dos outros dois filmes anteriores, escapa completamente ao fascínio pelo espetáculo vazio, que bastava e devorava a si próprio.

A começar que a maior violência do filme não reside nas cenas que mostram os soldados sendo dilacerados em pleno campo de batalha, mas sim na construção formal empreendida a partir do tema que verdadeiramente lhe fascina aqui (a saber, a defesa incontornável de uma crença sendo alvejada e posta à prova a todo e qualquer instante). Passamos de uma caminhada no topo de uma montanha (aqui, tanto os momentos de revelação quanto os de provação se passam no topo de uma montanha, local privilegiado dos cumes da experiência, um pouco como no primeiro filme de Gibson, O homem sem face) à uma briga entre irmão que, repentinamente, se mostra de uma violência inaudita, e daí à imagem num quadro, a qual enseja toda a crença do protagonista. A mesma lógica se aplica quando passamos à vida adulta de Desmond Doss (Andrew Garfield), na qual acompanhamos sua trajetória de apaixonado e aspirante à carreira média a soldado renegado em treinamento a herói em campo de batalha. De todas essas situações e passagens, Gibson parece se deter, sempre, no menor denominador comum para acentuar aquilo que move seu protagonista. O que há de mais violento, portanto, é essa bruta transição da qual sempre permanece o combustível de seu protagonista.

Por mais que hajam diversos elementos sugestivos, o fato é que pouco nos aprofundamos nos elementos psicológicos e afetivos do personagem de Andrew Garfield. Existe a mãe, existe o pai, existe o irmão, o conflito na família e posteriormente a esposa. Tudo isso só existe e adquire função na medida em que aprofunda essa misteriosa obsessão subversiva à não violência, a qual move Desmond. Sua fé é, então, defrontada com a barbárie da guerra. Se na primeira parte o mistério dessa crença era trabalhado sobre uma espécie de impassibilidade do personagem da Garfield, que nos fascinava com sua postura, ao mesmo tempo em que nos deixava decifrá-lo apenas até certo ponto, a segunda parte se baseia nessa crença sendo posta à prova da forma mais cura possível no campo de batalha, do qual ela sai mais intacta do que nunca.

Se nos seus dois filmes anteriores havia um vazio na abordagem espetacular de Gibson, aqui a grandeza da guerra só faz movimentar e ampliar o alcance da inabalável fé de Garfield, ou seja, o espetacular se encontra no papel oposto daquele que antes lhe havia sido confiado na filmografia do diretor. Curiosamente, se nos filmes anteriores também se falou sobre o caráter de estranheza que os filmes de Gibson representavam no corpus hollywoodiano (filmes rodados sem grandes estrelas, falados em línguas que não o inglês, produzidos pelo próprio autor através de sua própria empresa, portanto, fora do esquema dos grandes estúdios), mas que no fim das contas era uma estranheza de boutique, que apenas alimentava o esvaziamento espetacular dos filmes, é de se notar que aqui ele realiza o verdadeiro filme estranho ao estado atual das coisas em Hollywood, subvertendo todo um espetáculo – ainda que um espetáculo sangrento e cruel – para falar de algo insondável, igualmente subversivo.

Guilherme Savioli

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