Ano VII

Eu, Daniel Blake

sexta-feira fev 24, 2017

Daniel-Blake

Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake, 2016), Ken Loach

Com Eu, Daniel Blake a esquerda vai ao cinema confirmar suas certezas: pois não há nada no filme de Ken Loach fora do lugar, nada que não esteja ali significando exatamente o que deve significar; nenhuma ambiguidade ou reação imprevista; nenhum pathos complexificador que possa abalar o mundinho plano e esquemático criado pelo diretor. O drama pode estremecer alguns, mas saímos do filme como entramos.

Seguindo a velha cartilha, esse mundinho se baseia, primeiramente, numa utopia do povo, esta entidade naturalmente boa, pura e solidária que Loach representa aqui por alguns tipos sociais bastante óbvios: o proletário, a mãe solteira e o imigrante, que se viram e se ajudam como podem. E o que se passa no filme? Apenas que esse povo é vítima, sofre nas mãos daqueles que por trás dos panos manipulam o jogo, escondendo-se atrás da impessoalidade da burocracia e de uma cadeia coerciva que determina a vida de todos. Por trás de funcionários eventualmente solidários, há sempre um chefe opressor que recoloca a coisa nos eixos; contra todo desvio de conduta, há sempre seguranças a restabelecer a ordem por meio da coerção. Pouco importa que o filme seja “realista” e dispense vilões caricatos: é a maneira de Loach de distribuir valores entre os personagens em cada cena que é maniqueísta. Das virtudes de seus pequenos mártires do povo não podemos duvidar jamais.

Toda pretensão humanista aqui cai por terra uma vez que todo traço que pudesse singularizar os personagens, fazê-los transcender a condição de meros emblemas sociais, é limado. A começar pelo próprio protagonista, Daniel Blake (Dave Johns), uma caricatura dócil e resmungona do proletário, concebida de maneira tão ideal e positiva que a mera possibilidade de um espaço para hesitação ou distanciamento por parte do espectador é completamente abolida. Se o personagem eventualmente erra, é apenas por ser “bom demais”, puro demais, como na cena em que vai “salvar” Katie do bordel. Ou quando recusa um trabalho (aquele que seria sua salvação) por ainda estar aguardando autorização médica oficial — como uma pobre alma num filme de terror que, para desespero dos espectadores, faz exatamente aquilo que deveria não fazer. É nítida a dificuldade de Loach em injetar qualquer traço de particularidade no personagem: sua “história” pessoal é tão genérica que pode ser resumida num símbolo, o enfeite de peixinhos da esposa morta que ele evidentemente não venderá.

Assim, no mundinho esquemático do professor Ken Loach — cf. a aula escolar de geografia relacionando trabalho informal, pirataria e globalização: o vizinho imigrante, representando o capitalismo pós-industrial, em contraste com Daniel Blake, trabalhador manual, emblema “fordista” —, não há outro futuro para Daniel Blake a não ser a morte: trata-se da solução eficaz à maquinação de Loach, o único fim possível para o roteiro absolutamente reto do filme. No suposto humanismo de Loach, percebemos logo, interessam menos os homens — como vivem, o que amam ou desejam — do que provar um fato: a injustiça mata. Fato conhecido, mas politicamente raso, mero combustível para chantagismo emocional.

Cineasta acadêmico, Loach concentra sua retórica em truques de roteiro prontos a bajular o espectador: afinal, quem nunca se viu atônito e de mãos atadas diante da burocracia ou passou horas num atendimento telefônico com musiquinha de espera ao fundo? O público aqui supera toda diferença de classe e se regozija: cinema politizado fundado não no conflito ou na alteridade, mas numa identificação confortável, indiferente, “universal”. Ainda pior é a sequência da pichação: um grito vazio, sem eco na psicologia do personagem, pura “lacração” espetaculosa sem sentido, sem consequências (Blake não tem antecedentes, é liberado, e a cena logo fica para trás). Lição número um do cineasta populista: jogar a bola a favor do público.

Para que não sejamos injustos, dois ou três pontos positivos a se destacar. O primeiro, um interesse genuíno pelos ambientes cinzas da burocracia, uma abertura de fato por parte do filme àqueles espaços e às pessoas que nele circulam. E duas cenas: a gag do mouse e a sequência na instituição de caridade, em que Katie avança numa lata de comida. Aqui, diante da fome, pela primeira e única vez entrevemos uma energia humana inesperada se desprender do esquematismo do filme, nos pegando de surpresa.

Calac Nogueira

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