Ano VII

A Qualquer Custo

sexta-feira fev 24, 2017

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A Qualquer Custo (Hell or High Water, 2016), de David Mackenzie

Pensemos na cena inicial de A qualquer custo, composta pelo diretor Mackenzie em um habilidoso plano-sequência. Uma pequena agência bancária, ainda fechada, em uma empoeirada cidadezinha texana. Dois homens de rostos cobertos com máscaras preparam-se para iniciar um assalto. Imagem recorrente dos antigos faroestes. Uma coisa, no entanto, chama atenção. Ao invés de cavalos, os ladrões chegam de carro. Com isso, em breves momentos, o filme já deixa clara sua proposta, sempre reforçada ao longo da projeção, em virtude das opções estéticas do diretor, fidelíssimas a toda uma linguagem icônica. Não uma revisão ou atualização superficial de gênero. A qualquer custo é um western com toda a carga inerente a esse mítico modelo, cuja ação absorve das idiossincrasias da contemporaneidade.

David Mackenzie e o roteirista Taylor Sheridan criam aqui um filme até certo ponto distante das epopéias de gênese de uma sociedade ou da criação de laços de afinidade que caracterizavam os faroestes dos mestres John Ford e Howard Hawks. Ou da abordagem operística de Sergio Leone. Estamos aqui em um terreno mais próximo das pequenas histórias e da secura narrativa vista nos westerns de um Anthony Mann ou mesmo um Raoul Walsh.

A qualquer custo nos apresenta, como muitas vezes vimos antes, o protagonismo de cidadãos comuns e empobrecidos que basicamente se defendem e tentam sobreviver frente a adversidades. Só que agora, o antagonismo não mais está, como no século XIX, encarnado nos barões de gado que expulsavam colonos de suas terras para aumentar sua área de pastagens ou nos desafios impostos por terras a serem desbravadas. O vilão aqui é todo um sistema corporativo e financeiro, perante o qual os pequenos proprietários se encontram constantemente endividados. Tanner e Toby, os dois irmãos que assaltam somente para cobrir uma dívida familiar, seriam anti-heróis que encarnam uma faceta do mito de Robin Hood, roubando dos ricos para dar aos pobres, que, no caso, são eles próprios.

Por outro lado, como não podia faltar em um faroeste, temos um xerife. Assumindo um caso pequeno para manter-se em atividade às vésperas da aposentadoria, o Hamilton de Jeff Bridges une o desencanto e experiência de um John Wayne crepuscular, como o protagonista de O Último Pistoleiro (Don Siegel, 1976), à malandragem e deboche que caracterizavam infinitos personagens vividos por Walter Brennan, eterno alívio cômico em westerns da Hollywood clássica. Hamilton sabiamente não persegue, espera. Carrega consigo toda uma herança que converge eficiência e anacronismo, insistindo em desfilar piadas raciais sobre seu parceiro meio índio, meio mexicano. Realizado bem antes das eleições presidenciais americanas – A qualquer custo teve sua primeira exibição em maio de 2016, durante o Festival de Cannes – o filme ainda se dá ao luxo de ironizar, através da brilhante caracterização de Bridges, a América tradicionalmente racista e preconceituosa, sem antever a vitória de Trump.

Voltando ao filme enquanto um exemplar de cinema clássico que usa a iconografia temática para comentar questões referentes ao presente, observamos que A qualquer custo sedimenta-se como o mais bem sucedido faroeste contemporâneo, ao menos na última década. Podemos levantar uma possível comparação com o ótimo Onde os fracos não tem vez (2007). Nesse último, entretanto, os irmãos Coen mostram-se mais próximos não de criar um western na totalidade de sua essência, mas usar muitos de seus elementos para considerar a presença crescente na atualidade daquilo que poderia ser definido como um mal atávico, caracterizado no personagem de Javier Bardem.

A qualquer custo se abstém do uso de uma estrutura maniqueísta e faz pertinentes observações sobre como todo um universo pode, concomitantemente, preservar uma geografia e relações atemporais, modificando-se, para o bem ou para o mal, ao passar dos tempos. Podemos sintetizar esse ponto de vista em outra sequência: o embate climático entre Tanner e a polícia, no qual a dramaticidade dos longos duelos ou tiroteios com revólveres manuais é substituída pela crua e brutal eficiência dos rifles de precisão.

Há também que ressaltar que, em meio a toda sua riqueza de detalhes, A qualquer custo se coloca como uma poderosa reflexão sobre crise econômica e exclusão no momento atual. Mackenzie e Sheridan encarnam com brilho uma tradição de usar cinema de gênero para levantar discussões sobre questões relevantes, que quase sempre mostram maior eficácia cinematográfica que uma abordagem mais direta. Nisso podemos considerar que, em oposição ao maniqueísmo, à falta de sutileza, à encenação preguiçosa e até mesmo à pieguice de Ken Loach/Paul Laverty, A qualquer custo se mostra um filme muito mais rico na abordagem do tema da exclusão que o limitado – e superestimado – Eu, Daniel Blake. Se nesse último o protagonista é mostrado como um coitadinho, eterna vítima, vemos aqui que Toby e Tanner não se limitam a pichar paredes. Partem para uma ação direta, tentando, a seu modo, reverter sua situação.

Como se tudo até então não bastasse A qualquer custo encerra com uma sequência de diálogo entre Chis Pine e Jeff Bridges que, sem qualquer exagero, merece o epíteto de “chave de ouro”. Aqui, mais que o texto, são referências visuais que sintetizam toda uma ideia central na qual está imbuído o filme. Após observarmos a propriedade dos irmãos agora repleta em poços de petróleo, vemos um embate verbal entre os dois personagens, cuja postura corporal irá consolidar a reflexão sobre como a passagem do tempo, concomitantemente, preserva e modifica a forma como o cinema, eterno formador de um imaginário, retrata todo um universo sintetizado em um microcosmo texano.

Bridges, sentado de pernas cruzadas em uma cadeira na varanda, assume uma postura que traz à memória outro lendário xerife, o Wyatt Earp de Henry Fonda no fordiano Paixão dos Fortes (1946). Contrasta-se, entretanto, a posição do chapéu, na cabeça de Fonda e nos pés de Bridges, como se esse estivesse prestes a chutá-lo, em reflexo ao anacronismo que parece ter finalmente engolido o personagem. Já Pine, de pé, camisa com dois botões abertos e segurando um rifle, remete a outro filme que, já em sua época, refletia sobre como a economia de exploração do petróleo substituiria os latifundios de criação pecuária e modificaria os valores e a paisagem texana: Assim caminha a humanidade (1956) de George Stevens. A figura de Pine lembra o Jett Rink vivido por James Dean, ainda na juventude, antes de se estabelecer como barão do petróleo. O que muda aqui é a posição do rifle. Dean tem o rifle erguido ao ombro, reflexo de uma postura confrontadora. Pine, no entanto, mostra o rifle abaixado, prestes a ser recolhido, uma vez alcançado seu intento. São figuras que encarnam, com muita sutileza e propriedade, a ideia que, mesmo após todos esses anos, é ainda o western aquele gênero que sintetiza e carrega consigo toda uma historiografia da sociedade norte-americana.

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My darling

Gilberto Silva Jr.

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